Roma, Itália. 25 de Abril de 2024. O dia lembra ao mundo aqueles que enfrentaram os nazistas e as tropas de Mussolini, na Segunda Guerra. O Brasil, como a Itália, é um Estado Democrático de Direito e antifascista. 

Imagem La Stampa (ansa)

A visão de Charles Darwin sobre os escravizados no Brasil: 'Serão, no fim das contas, os governantes'

Camilla Veras Mota - @cavmota
BBC News Brasil




Teoria da evolução pela seleção natural mudou a maneira como pensamos sobre o mundo natural

"Eu não posso deixar de pensar que eles (africanos escravizados) serão, no fim das contas, os governantes". A frase foi escrita no Rio de Janeiro pelo naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882) em seu diário no dia 3 de julho de 1832.

Não se concretizou e não virou teoria, mas serve para revelar visões pouco conhecidas do autor de A Origem das Espécies.

O britânico que revolucionou a biologia com sua teoria da evolução pela seleção natural era um abolicionista convicto.

Era sua "causa sagrada", como define James Moore, historiador da ciência que mergulhou na visão de Darwin sobre raça e sobre o escravismo e é autor, com o colega Adrian Desmond, de Darwin's Sacred Cause: Race, Slavery and the Quest for Human Origins ("A Causa Sagrada de Darwin: Raça, Escravidão e a Busca pela Origem Humana", em tradução literal).

As anotações do naturalista sobre a viagem ao Brasil — onde ficou por quatro meses durante seu périplo de cinco anos a bordo do navio Beagle — estão recheadas de descrições horrorizadas sobre a escravidão.

Em uma delas, ele menciona o caso de uma senhora que morava em uma casa em frente ao local em que estava hospedado no Rio de Janeiro e que guardava parafusos para torturar suas escravas domésticas, quebrando-lhes os dedos. Em outro, que ele define como algo que o marcou "mais que qualquer história de crueldade", o episódio começa quando Darwin tenta se comunicar com um homem escravizado que o acompanhava em um barco.

Enquanto o cientista gesticulava de forma efusiva para tentar se fazer entender, acaba aproximando a mão do rosto do homem, que, assustado, baixa os braços: ele pensava que o naturalista queria bater em seu rosto, e abriu a guarda para que ele pudesse fazê-lo.

"Nunca vou esquecer meu sentimento de surpresa, repugnância e vergonha por ver um homem grande e forte com medo de se defender do que ele pensava ser um tapa em seu rosto. Aquele homem fora treinado para se habituar a um nível de degradação maior do que o da escravização de qualquer animal indefeso".






Ilustração de Paul Harro-Harring de 1840: diversos artistas estrangeiros retrataram horrores da escravidão brasileira no século 19

Parte do ideário do cientista vinha de casa. Os Darwin eram uma família abastada repleta de intelectuais liberais. Seu avô, Erasmus Darwin, foi um dos fundadores da Lunar Society, grupo de pensadores que se reunia em noites de lua cheia uma vez por mês na cidade inglesa de Birmingham.

"Era uma família de amantes de artes e, do ponto de vista moral, adepta do que os autores chamariam depois de humanitarismo. Praticavam a compaixão e não gostavam de crueldades, de forma que nunca bateriam em alguém que trabalhasse para eles - daí o choque de Darwin quando se depara com a escravidão no Brasil", diz Maria Elice de Brzezinski Prestes, professora do departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências (IB) da Universidade de São Paulo (USP).

Ao deixar o Brasil, Darwin escreveu: "Nunca hei de voltar a um país com escravidão". A frase, que ficaria célebre mais tarde, está no livro A Viagem do Beagle, publicado em 1839 — nos trechos finais de um calhamaço com mais de 500 páginas.

As linhas que abrem essa reportagem, no entanto, estão entre as muitas que ele escreveu em seu diário, mas decidiu deixar de fora dos livros. Nas últimas décadas, essas páginas, hoje acessíveis a pesquisadores e ao público em geral, vêm sendo mais bem exploradas.

No dia 3 de julho de 1832, quando Darwin diz acreditar que os escravizados um dia vão governar o Brasil, ele escreve:

"O estado da enorme população de escravos deve despertar interesse de qualquer um que entra no Brasil. Ao caminhar pelas ruas, é curioso observar a variedade de 'tribos' que podem ser identificadas pelos diferentes ornamentos marcados na pele e pelas várias expressões. Os escravos são obrigados a se comunicar entre si em português e, por consequência disso, não são unidos. Eu não posso deixar de pensar que eles serão, no fim das contas, os governantes. Presumo isso por serem numerosos, por seu excelente porte atlético (especialmente em contraste com os brasileiros), observando que estão em um clima agradável e por ver claramente que sua capacidade intelectual foi muito subestimada. Eles são a mão de obra eficiente em todo o comércio necessário. Se os negros libertos crescerem em número (como deve acontecer), o tempo de libertação total não estaria muito distante."

A provocação sobre o porte físico não é o único comentário que Darwin direciona ao grupo que ele classifica como "brasileiros" nas anotações de 3 de julho:

"Os brasileiros, até onde consigo avaliar, possuem uma fatia pequena das qualidades que dão dignidade à humanidade. Ignorantes, covardes, indolentes ao extremo; hospitaleiros e amáveis à medida que isso não lhes dê trabalho; temperamentais e vingativos, mas não brigões. Satisfeitos consigo mesmos e com seus costumes, respondem a todas as observações com a pergunta: 'Por que não podemos fazer como nossos avós antes de nós fizeram?' A própria aparência reflete a baixa elevação de caráter. Tipos baixos que logo ficam corpulentos; a face possui pouca expressão, aparenta estar afundada entre os ombros. Os monges diferem para pior nesse último aspecto; é preciso pouca fisionomia para ver claramente estampados perseverança ardilosa, volúpia e orgulho."






Anotações de Darwin do dia 3 de julho de 1832: comentários sobre brasileiros feito no diário não entrou nos livros

Juntos, os parágrafos ilustram a complexidade do pensamento de Darwin — e um lado "incômodo" de suas ideias, algo que durante bastante tempo os historiadores evitavam discutir, diz Prestes.

"O que Darwin falou sobre raça ficava, assim, meio esquecido [nas discussões sobre seu trabalho]. Foi uma postura historiográfica por muito tempo, praticamente até o século 21", afirma ela, emendando que essa faceta do naturalista vem sendo mais debatida nas últimas duas décadas.

As complexidades de Darwin

De um lado, Darwin era um antiescravista, abolicionista. Dedicou parte da carreira para mostrar que as diferentes raças tinham a mesma origem, um ancestral comum — algumas das teorias da época chegavam a dizer, por exemplo, que brancos e negros eram de espécies diferentes, o que muitas vezes foi usado para legitimar a escravidão.

Isso não significava, porém, que julgasse que todas as civilizações eram iguais. Para ele — e para as teorias antropológicas dominantes da época —, os diferentes povos se encontravam em diferentes estágios de civilização, uns mais avançados que outros.

Com o tempo, a própria ciência mostraria que essas ideias, que depois seriam usadas por outros autores como base para teorias pseudocientíficas racistas como a eugenia, não se sustentavam com evidências.

"Hoje ele [Darwin] nunca teria permissão para ensinar em uma instituição de ensino do Reino Unido ou dos EUA, em qualquer nível. É carregado de estereótipos e preconceitos — assim como quase tudo que foi escrito [naquela época] sobre os mesmos assuntos", pontuou Moore em um comentário enviado por e-mail à reportagem da BBC News Brasil.

"Ele era anticatólico; viu os brasileiros da colônia corrompidos pela Igreja e por sua cultura política colonial, principalmente o suborno. Ao mesmo tempo e no mesmo local, viu os indígenas e os admiráveis africanos escravizados como corrompidos por seus senhores. Camadas e mais camadas de preconceito, embora não sem alguma verdade", completa o historiador britânico.






Enquanto ideias abolicionistas ganham fôlego nos anos 1830, racismo toma verniz pseudocientífico

Um homem de seu tempo

A professora Maria Elice Prestes ressalta que, para entender o pensamento de Darwin, é preciso considerá-lo como sujeito de sua época — um homem britânico do século 19, que viveu em pleno período de expansão do imperialismo britânico.

Nos séculos 17 e 18, as colônias inglesas mundo afora tinham escravos, mas pouco se falava sobre o papel da Inglaterra dentro da engrenagem escravista.

As ideias do quanto o país lucrou com o complexo escravista atlântico, do quanto esse sistema foi fundamental para o salto inglês na virada do século 18 para o 19 e das pressões que o próprio capitalismo industrial coloca para o fim da escravidão começam a ser divulgadas, segundo a historiadora, com Capitalismo e Escravidão, de Eric Williams, um livro de 1944.

A teoria é fruto da tese de doutorado de Williams, que nasceu no que então era a colônia britânica de Trinidad e Tobago, no Caribe. Apesar de o trabalho ter sido desenvolvido na Universidade de Oxford, o historiador só conseguiu publicá-lo como livro nos EUA, para onde se mudou por conta das dificuldades que vinha enfrentando para divulgar sua tese.

De volta ao século 19: o antiescravismo de Darwin era algo relativamente comum entre os britânicos.

A Inglaterra foi um dos primeiros países a interromper o tráfico de pessoas escravizadas (em 1807, com o Slave Trade Act) e a emancipar os escravizados (em 1833, com o Slavery Abolition Act), medidas vistas por muitos britânicos como "uma evidência de como a civilização inglesa era mais avançada que as demais", ressalta a historiadora da biologia.

"Tudo isso foi propagandeado como sendo a marca da superioridade da civilização inglesa e como algo dentro da ordem natural do progresso. Assim como a civilização inglesa já teve escravos e não tem mais, muitas nações ainda tinham. Isso virou um grande orgulho inglês", acrescenta.

"Você consegue ver isso nas obras de autores do século 19, como eles são absolutamente orgulhosos desse antiescravismo."

E Darwin foi um homem de seu tempo, diz ela, que "acredita piamente que a Inglaterra estava deslumbrando o mundo com seu apogeu civilizatório".

O biólogo Nélio Bizzo, professor da Faculdade de Educação da USP e especialista na obra de Darwin, lembra que, para além da propaganda antiescravista, a Inglaterra tomava nessa época ações concretas de repressão ao tráfico de pessoas escravizadas.

A partir de 1810, o Brasil firmaria compromisso com o país de acabar com seu tráfico negreiro em diversas ocasiões. Eram as "leis para inglês ver", as medidas que acabavam com o tráfico no papel, mas nunca eram cumpridas na prática — e acabaram dando origem ao ditado popular.

Foram vários os navios negreiros com destino ao Brasil interceptados e apreendidos pela Marinha britânica até que o tráfico fosse de fato abolido em 1850.

"Para entender o que Charles Darwin fala dos brasileiros quando está no Rio de Janeiro é preciso entender o contexto, o momento em que ele se encontra. O maior comércio de escravizados do planeta era feito justamente ali", diz ele. O Cais do Valongo, no Rio, foi o maior porto receptor de pessoas escravizadas do mundo.

Abolicionismo, mas não antirracismo

Mas se aquele era um período em que as ideias abolicionistas ganhavam fôlego, também era uma época em que o racismo tomava um verniz científico e que o império britânico começa a colonizar o continente africano.

"Os anos 30 de Darwin, que é quando ele está escrevendo [o diário], são recheados de complexidades", destaca a historiadora Lorelai Kury, pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

É quando se popularizam, por exemplo, os estudos da fisiognomonia, que tentava extrair conclusões sobre o caráter do indivíduo a partir de seus traços físicos, e da frenologia, que usava a medida do crânio como indicativo da capacidade intelectual. Ambos foram usados pelo racismo científico do período, hoje colocado por terra.

Os escritos de Darwin sobre os brasileiros tomam emprestado elementos das ideias naturalistas que circulavam na época e que correlacionavam características físicas dos indivíduos com traços morais e intelectuais.

"Darwin acredita que a escravidão deteriora as relações e a moralidade, que contamina a sociedade de alto a baixo — e que é algo que eventualmente começaria a se refletir fisicamente nas populações", diz Kury. "Naquela época, era um lugar comum, principalmente da parte dos europeus não ibéricos, considerar espanhóis e portugueses particularmente cruéis e, por conta disso, inferiores aos demais europeus."

A professora acredita que a menção aos "brasileiros" no trecho do dia 3 de julho se refere aos portugueses e seus descendentes. É uma descrição, diz ela, que embute uma série de preconceitos, entre eles em relação à altura — fisicamente, os britânicos tendiam a ser mais altos do que os ibéricos.

Para o professor Nélio Bizzo, esse choque que Darwin tem ao se deparar com a escravidão no Brasil ajuda a explicar em parte o que ele escreve sobre os africanos escravizados.

"Ele começou a torcer pelos africanos no Brasil. E havia tantos que ele pode ter pensado que alguma coisa como aquilo que tinha ocorrido no Haiti iria acontecer no Brasil também", diz o biólogo. O fim da escravidão e a independência do Haiti ocorrem com protagonismo dos próprios escravizados, e o país se torna, em 1804, a primeira república governada por pessoas de ascendência africana.

Bizzo ressalta que a "exegese" (a interpretação) daquilo que é escrito de forma particular pelos cientistas e pensadores, como anotações e correspondências, deve ser feita de forma diferente do que foi concebido para ser tornado público.

Nesse sentido, diz o professor, as principais evidências a respeito das posições de Darwin sobre o racismo e sobre o fim da escravidão vêm dos elogios que ele fez a um texto bastante problemático escrito pelo cientista inglês Thomas Huxley, um abolicionista, publicado em 1865 (o ensaio se chama Emancipation - Black and White).

Ao comentar sobre a guerra civil americana, que acabara de terminar, Huxley defende a superioridade de brancos em relação a negros, e o faz usando uma linguagem profundamente preconceituosa.

"Mesmo aqueles que eram contrários à escravidão, não se pode dizer que eles fossem automaticamente antirracistas ou que não fossem racistas", pontua Bizzo.

"Infelizmente, é uma questão complicada mesmo, e por isso que eu acho que não se pode ter uma admiração cega por quem quer que seja no mundo da ciência."







Na teoria da evolução pela seleção natural de Darwin, que revolucionou a ciência, todos os homens surgem a partir de um ancestral único




O darwinismo social (que de darwinista não tem nada)

A teoria da seleção natural que Darwin escreveu para explicar a evolução das espécies — e não as diferenças entre os seres humanos —, acabou sendo apropriada por outros cientistas que a usaram como matéria-prima para teorias racistas. Entre elas estão o darwinismo social, que prega que apenas os mais fortes estão aptos a sobreviver, e a eugenia, a ideia de que é possível "melhorar" geneticamente uma população, que se tornou central para o nazismo.

Apesar de usar o nome do cientista, contudo, o darwinismo social é uma distorção da teoria darwiniana, ressalta a historiadora Lorelai Kury.

"Darwin nunca disse que o melhor vai vencer; é o mais adaptado àquela circunstância específica. Mudando as circunstâncias, o mais adaptado vai ser outro", explica a professora.

"Para Darwin, é o acaso, e não algo pré-definido, que leva à adaptação. No darwinismo social, [a adaptação] é uma justificativa das hierarquias sociais, mas Darwin não justifica nada — a natureza não age moralmente. São leis naturais, ela não tem um objetivo moral", conclui.

A professora Maria Elice Prestes avalia que, ainda que Darwin acreditasse que existissem grupos étnicos mais ou menos civilizados do que outros — o que ele deixa bem claro no livro A Descendência do Homem, de 1871 —, essas ideias não se traduzem em violência e exclusão.

Em consonância com o princípio do humanitarismo que norteava suas crenças, diz a professora, não há justificativa dentro do pensamento do cientista para se agir de forma negativa ou cruel contra os povos que ele considera "menos civilizados". Darwin acreditava na possibilidade de que as civilizações que ele considerava "inferiores" progredissem, especialmente se tivessem contato com as consideradas "mais civilizadas".

Na teoria da evolução pela seleção natural de Darwin, que revolucionou a ciência, todos os homens surgem a partir de um ancestral único.

À medida que esse "primeiro humano" se reproduz e suas descendências se multiplicam, as populações humanas vão se espalhando geograficamente - é quando a seleção natural atua e acaba favorecendo a disseminação dos grupos étnicos (ou "raças", como se costuma falar de forma coloquial) que melhor se adaptam a cada ambiente.

"Darwin insiste que, ainda que as raças sejam diferentes, não há espécies diferentes. E do ponto de vista biológico, moral e religioso o significado disso é enorme, porque, se somos irmãos, eu não posso escravizar, não posso perseguir, não posso fazer genocídio", diz Prestes.

Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-61686803

Gilmar Mendes rejeita ação proposta por diretório estadual de partido político



As ações devem ser assinadas pelo diretório nacional, ainda que a norma questionada seja estadual.

DECISÃO

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), julgou inviável a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 996, proposta pelo Diretório Regional do Partido Verde (PV) em Pernambuco contra lei estadual. O ministro explicou que, para ajuizar ação de controle concentrado de constitucionalidade no Supremo, o partido deve estar representado por seu diretório nacional, ainda que o ato questionado tenha amplitude apenas estadual, como no caso.

Na ação, o diretório do PV questionava lei de Pernambuco que autoriza o governo do estado a celebrar acordos para efetivar policiais militares que estão no cargo por força de liminares que garantiram participação no curso de formação.

O relator observou que, de acordo com a Lei da ADPF (Lei 9.882/1999), os partidos políticos com representação no Congresso Nacional têm legitimidade para propor essa ação. Contudo, a jurisprudência do STF é de que essa legitimidade está vinculada ao diretório nacional, que define a posição institucional do partido, e não ao órgão estadual

VP//CF

Fonte: STF.

Disponível em stf.jus.br

Reiteração de razões não é motivo para tribunal não conhecer de apelação

DECISÃO

21/10/2022 08:40

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por unanimidade, determinou o retorno de um processo ao tribunal de origem para que aprecie os argumentos da apelação, pois, segundo a jurisprudência, a mera reiteração das razões já apresentadas na petição inicial ou na contestação, por si só, não é motivo para o não conhecimento de recurso. O colegiado destacou, entretanto, que as razões do apelante, em tese, devem ser capazes de invalidar os fundamentos da sentença.

De acordo com os autos, foi ajuizada ação de obrigação de fazer, com pedido de tutela provisória, para que um vídeo fosse retirado da plataforma eletrônica da ré. O autor afirmou que a gravação ofendeu sua honra e sua imagem.

A sentença confirmou a liminar que havia ordenado a retirada do conteúdo, e também determinou o fornecimento de dados cadastrais para a identificação do usuário responsável pela postagem, ambos sob pena de multa em caso de descumprimento.

Tribunal de Justiça não conheceu da apelação

O Tribunal de Justiça do Tocantins (TJTO) não conheceu do recurso interposto, sob o fundamento de que o apelante apenas reproduziu o que estava na contestação, sem assinalar os pontos em que, na sua opinião, o magistrado estaria equivocado.

A relatora do recurso especial contra a decisão do TJTO, ministra Nancy Andrighi, destacou a orientação do STJ segundo a qual a simples repetição das razões já apresentadas na petição inicial ou na contestação não é suficiente para o não conhecimento do recurso.

Conforme observou, essa repetição não indica necessariamente ofensa ao princípio da dialeticidade, "que impõe ao apelante o dever de motivar e fundamentar seu recurso, insurgindo-se contra os fundamentos da decisão combatida".

As razões reiteradas devem impugnar a sentença

Segundo a magistrada, uma parcela da doutrina entende que, em respeito ao princípio da instrumentalidade das formas, eventuais vícios formais do recurso devem ser superados em favor da solução para o problema de direito material. Desse modo, se a mera leitura da apelação permite concluir quais seriam os equívocos da sentença, o tribunal deve julgar o mérito do recurso.

Por outro lado, a ministra apontou que, "embora a mera reprodução da petição inicial nas razões da apelação não enseje, por si só, afronta ao princípio da dialeticidade, se a parte não impugna os fundamentos da sentença, não há como conhecer da apelação".

Nancy Andrighi destacou que, mesmo não entrando no mérito da matéria, foi possível verificar que a parte recorrente apresentou razões que mostram o equívoco dos fundamentos adotados pelo juízo de primeiro grau.

"Não há que se falar em não conhecimento da apelação por ausência de impugnação da sentença, tampouco por reprodução das razões da contestação, de modo que o acórdão recorrido deve ser reformado", concluiu a ministra.

O número deste processo não é divulgado em razão de segredo judicial.

Fonte: STJ / Disponível em: stj.jus.br

 

Banco Central do Brasil no X

Eleição e voto no Brasil

O voto é obrigatório para os brasileiros alfabetizados, de um e outro sexo, entre 18 e 70 anos, salvo os enfermos, os que se encontrem fora do seu domicílio, os funcionários civis e os militares, em serviço que os impossibilite de votar.

O eleitor que deixar de votar e não se justificar perante o Juiz Eleitoral até trinta dias após a realização da eleição incorrerá na multa de três a dez por cento sobre o salário mínimo, imposta pelo Juiz Eleitoral, que levará em conta a condição econômica do eleitor, podendo este ser isentado, se comprovar devidamente seu estado de pobreza. A multa, todavia, pode ser aumentada até dez vezes se o Juiz ou Tribunal considerar que, em virtude da situação econômica do infrator, é ineficaz, embora aplicada no máximo. 

Sem a prova de que votou na última eleição, pagou a respectiva multa ou de que se justificou devidamente, não poderá o eleitor inscrever-se em concurso ou prova para cargo ou função pública, investir-se ou empossar-se neles; receber vencimentos, remuneração, salário ou proventos de função ou emprego público, autárquico ou paraestatal, bem como fundações governamentais, empresas, institutos e sociedades de qualquer natureza, mantidas ou subvencionadas pelo governo ou que exerçam serviço público delegado, correspondentes ao segundo mês subsequente ao da eleição. Ademais disso, não poderá tal eleitor participar de concorrência pública nem obter empréstimo em caixas econômicas estaduais ou federais e sociedades de economia mista e com essas entidades celebrar contratos. Na mesma situação é vedado ao eleitor obter passaporte ou carteira de identidade; renovar matrícula em estabelecimento de ensino oficial ou fiscalizado pelo governo; praticar qualquer ato para o qual se exija quitação do serviço militar ou imposto de renda. Entre outras vedações impostas pelo Código Eleitoral brasileiro. 

Aos analfabetos, assim como aos jovens maiores de 16 e menores de 18 anos e aos idosos com mais de 70 anos a lei confere a faculdade de votar, isto é, o voto é opcional. 

Na urna eletrônica o primeiro cargo a ser preenchido é para Deputado Federal, com quatro dígitos. Depois, vota-se no candidato (a) a Deputado Estadual ou Distrital, com cinco dígitos. A seguir o voto para Senador, com três dígitos e depois para Governador, em dois dígitos. O derradeiro voto é para Presidente da República, também com dois dígitos.


Não há diferença prática entre votar em branco e votar nulo: os votos brancos e os nulos não são considerados na ocasião da apuração; somente são levados em conta os votos válidos. 

Se o eleitor quer anular seu voto basta digitar um número que não seja de nenhum partido ou candidato e apertar a tecla confirma. Para votar em  branco há uma tecla com a palavra branco escrita, basta que a tecle e confirme.

Cuidado com isso: novamente, votos nulos e em brancos não são considerados na apuração. 

Em caso de nulidade de mais de 50% dos votos haveria uma nova eleição, mas essa nulidade não se refere a votos nulos ou brancos, mas sim a situações em que candidatos são afastados da disputa, por exemplo, pelo cometimento de atos ilícitos. Segundo o Art. 224 do Código Eleitoral brasileiro, se a nulidade atingir a mais de metade dos votos do País nas eleições presidenciais, do Estado nas eleições federais e estaduais ou do Município nas eleições municipais, julgar-se-ão prejudicadas as demais votações e o Tribunal marcará dia para nova eleição dentro do prazo de vinte a quarenta dias.

A nulidade expressa pelo Código Eleitoral refere hipótese de ocorrer eventual perda de direito ao mandato de um candidato eleito e condenado por compra de votos, por exemplo. Em uma situação dessa, o candidato perderia o mandato e se recebesse mais da metade dos votos seria realizada uma eleição suplementar. 

O primeiro turno da eleição brasileira ocorre dia 2 de outubro de 2022 e em caso de segundo turno, essa votação ocorrerá em 30 de outubro de 2022.

Qualificadora de paga não se aplica a mandantes do crime

 DECISÃO

Quinta Turma vê incidência inadequada de qualificadora e redimensiona pena de réus da Chacina de Unaí

    Por considerar inadequada a incidência da qualificadora de homicídio mediante pagamento ou promessa de recompensa (artigo 121, parágrafo 2º, inciso I, do Código Penal), a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu nesta terça-feira (6) redimensionar as penas de três réus condenados pela chamada Chacina de Unaí. No episódio, ocorrido em 2004, três auditores fiscais e um motorista do Ministério do Trabalho foram assassinados enquanto exerciam a fiscalização do trabalho rural no município de Unaí (MG).

    Com a retirada da qualificadora, o colegiado fixou a pena do proprietário rural Norberto Mânica – acusado de ser o mandante do crime – em 56 anos e três meses de reclusão. Já para os réus José Alberto de Castro e Hugo Alves Pimenta – denunciados por contratarem os pistoleiros que executaram os disparos contra os servidores –, o colegiado fixou a pena em 41 anos e três meses e em 27 anos de reclusão, respectivamente.

     De acordo com o Ministério Público Federal, os três auditores fiscais e o motorista do carro estavam próximos a uma fazenda quando foram vítimas de tiros disparados por assassinos profissionais. Os auditores morreram na hora, enquanto o motorista faleceu horas depois do crime.

     Após a condenação do tribunal do júri, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) fixou a pena de reclusão de Norberto Mânica em 65 anos e sete meses; a de José Alberto de Castro em 58 anos e dez meses; e a de Hugo Alves Pimenta – corréu beneficiado por ter sido colaborador – em 31 anos e seis meses. No acórdão, o TRF1 manteve a qualificação do crime pelo pagamento de recompensa.

Qualificadora de paga não se aplica a mandantes do crime

     Relator dos recursos especiais, o ministro Ribeiro Dantas explicou que, segundo a jurisprudência mais recente do STJ, a qualificadora de paga se aplica apenas aos executores diretos do homicídio, porque são eles que recebem, efetivamente, o pagamento ou a promessa de recompensa para executar o crime.

    "Como consequência, o mandante do delito não incorre na referida qualificadora, já que sua contribuição para o cometimento do homicídio em concurso de pessoas, na forma de autoria mediata, é a própria contratação e pagamento do assassinato", completou o ministro.

    Apesar dessa posição, Ribeiro Dantas reconheceu a existência de julgados do STJ em sentido contrário, porém o magistrado se baseou em entendimento da doutrina no sentido de que a qualificadora é voltada para aquele que obtém a recompensa pela execução do crime, ou seja, não poderia ser aplicada àquele que a oferece, pois sua motivação é diferente da prevista na qualificadora.

    A qualificadora do artigo 121, parágrafo 2º, inciso I, do CP, segundo o ministro, "diz respeito à motivação do agente, tendo a lei utilizado, ali, a técnica da interpretação analógica. Vale dizer: o homicídio é qualificado sempre que seu motivo for torpe, o que acontece exemplificativamente nas situações em que o crime é praticado mediante paga ou promessa de recompensa, ou por motivos assemelhados a estes".
    
Qualificadora não poderia ser apresentada aos jurados, mas não há motivo para anulação

     O relator lembrou que os executores diretos da chacina foram julgados em autos apartados, de modo que, no recurso analisado, está presente apenas o núcleo apontado pelo Ministério Público como mandante do crime. Por essa razão, para o ministro, a qualificadora de paga não poderia nem ter sido colocada como quesito para os jurados no julgamento desses réus.

    Entretanto, Ribeiro Dantas considerou não ser necessária a anulação do júri como um todo, sendo suficiente a retirada da qualificadora ilicitamente considerada na dosimetria da pena.

    "Sem a qualificadora da paga, a única circunstância que permanecerá a qualificar o homicídio será a do inciso V do artigo 121, parágrafo 2º, do CP, o que impõe seu decote na segunda fase da aplicação da pena. Para além desse impacto no cálculo do apenamento, nenhuma outra consequência advirá da exclusão da qualificadora da paga", apontou.

    Segundo o relator, situação distinta ocorreria se o vício tivesse ocorrido nos quesitos de autoria, de materialidade ou da absolvição, porque, nessas hipóteses, estaria prejudicada a compreensão da própria vontade popular quanto à condenação dos réus.

    "Nesta ação penal, contrariamente, inexiste dúvida quanto à autoria e à materialidade do delito, estando clara, também, a opção dos jurados pela condenação. Como se não bastasse, permanece hígida uma das qualificadoras reconhecidas pelo júri (a do artigo 121, parágrafo 2º, inciso V, do CP), de maneira que tampouco se questiona o enquadramento das condutas dos recorrentes como homicídios qualificados", concluiu o ministro.

Processo: REsp 1973397
Fonte: Superior Tribunal de Justiça
Disponível em: https://www.stj.jus.br/

O arcebispo de Canterbury

 

AFP/Jack Hill


Ao colocar a justiça no coração da economia, podemos melhorar o desempenho, melhorando a vida de milhões de pessoas. Alcançar prosperidade e justiça juntos não é apenas um imperativo moral - é econômico.

WELBY, Justin

Audiência de Custódia

Manifesta e grave ilegalidade na ausência

de realização de audiência de custódia - HC

202579 AgR/ES e HC 202700 AgR/SP


Resumo:

A superveniência da realização da audiência de instrução e julgamento não torna superada a alegação de ausência de audiência de custódia.

A audiência de custódia tem finalidades sistêmicas totalmente distintas daquelas desempenhadas pela audiência de instrução e julgamento. A audiência de custódia possui limitações, pois não se pode antecipar o julgamento de mérito do processo com aprofundamento instrutório. Contudo, tendo-se em vista que no ato há um contato da defesa com um juiz, deve-se dar primazia ao exercício do contraditório de modo oral e com imediação, para controle da legalidade da prisão e especial atenção à revisão de ilegalidades manifestas.

Ainda que eventualmente questões sobre a prisão ou eventuais abusos possam ser levantadas pelas partes na audiência de instrução, deve-se perceber que tais questões seriam objeto de análise incidental, e não o tema central da audiência a ser submetido ao contraditório. A depender da inércia das partes, esses pontos podem nem mesmo ser abordados.

Além disso, aceitar a superação da necessidade de realização da audiência de custódia pelo transcurso do prazo e a ocorrência da audiência de instrução findaria por transmitir uma mensagem distorcida aos operadores do sistema criminal, no sentido da desnecessidade da medida.

Com base nesse entendimento, a Segunda Turma, diante do empate na votação, deu parcial provimento aos agravos regimentais, para conceder parcialmente a ordem de habeas corpus. Vencidos os ministros Nunes Marques (relator) e Edson Fachin, que negaram provimento aos recursos.

HC 202579 AgR/ES, relator Min. Nunes Marques, redator do acórdão Min. Gilmar Mendes, julgamento em 26.10.2021 

HC 202700 AgR/SP, relator Min. Nunes Marques, redator do acórdão Min. Gilmar Mendes, julgamento em 26.10.2021

Fonte: Supremo Tribunal Federal. Informativo STF nº 1036/2021. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/textos/verTexto.asp?servico=informativoSTF.

Da custódia, proteção e tutela do homem, e dos bens da vida

 Arion Louzada

Desde as exéquias do positivismo jurídico direito é mais do que técnica e os conteúdos dos códigos. O Direito não é somente um conjunto de processos e procedimentos ou a parte material de ambos, mas também, e especialmente, a determinação de extensão das garantias e proteção de valores fundamentais. 

Ao Direito cabe a custódia, proteção e tutela dos bens da vida e da pessoa humana em sua interação social.

O Direito assegura o que não está entregue à livre interpretação na sede das garantias individuais e coletivas, patrimônios intangíveis da comunidade internacional dos povos.

A obra de Darcy Azambuja e os 80 anos da 'Teoria Geral do Estado'


Geraldo Hasse, especial para o Jornal do Comércio 

Edição de 07 de julho de 2022. Imagens: reprodução/Tânia Meinerz/JC 

   Acadêmico e escritor Darcy Azambuja é autor de livro de referência nos fundamentos da Democracia 
                                                                 
Está fazendo 80 anos que foi lançado pela Livraria do Globo o livro didático Teoria Geral do Estado, largamente adotado em escolas superiores de todo o Brasil, a começar pela Faculdade Livre de Direito de Porto Alegre, onde o autor Darcy Azambuja era professor desde 1931. Tratado por estudantes e professores pela sigla TGE, esse livro se tornou um fenômeno editorial, sendo reimpresso ou reeditado quase todos os anos. Em 2005, quando foi lançada pela JÁ Editores a biografia de Darcy Azambuja (1903-1970), sua TGE estava na 45ª edição. Mesmo tendo sido substituído gradualmente por obras de outros autores, o livro do professor gaúcho é considerado um clássico do ensino dos fundamentos da democracia.

O título TGE fez escola. No atual cadastro da Câmara Brasileira do Livro, o título Teoria Geral do Estado (sozinho ou acompanhado de outros vocábulos como “moderno” ou “contemporâneo”) está presente em 343 obras. Mas esse número é um indicador impreciso, informa Iolanda Rodrigues, bibliotecária da CBL. Livros anteriores à criação do International Standard Book Number (ISBN), que somente em 2003 se tornou obrigatório no Brasil, não podem ter sua história totalmente rastreada pelo número de registro, controlado pela Biblioteca Nacional. O último ISBN da Teoria Geral de Darcy Azambuja data de 29/09/2008, provavelmente correspondente à última edição da Editora Globo, que não deu retorno a um pedido de informações do JC.

Por aí se vê que é praticamente impossível levantar a trajetória completa de um livro didático antigo como a pioneira TGE. Por exemplo, qual terá sido sua tiragem total ao longo de tantas décadas? A quantos professores serviu como guia didático? Quantos estudantes se formaram tendo o tio Darcy como fonte de consulta?

Mesmo com uma carreira restrita ao âmbito pedagógico no ensino superior, esse livro teve um alcance muito maior do que milhares de obras de outras categorias literárias. Alguns livros de ficção, ensaio ou história largamente divulgados na mídia se tornaram populares, caso de Vidas Secas de Graciliano Ramos (1938), O Tempo e o Vento de Erico Verissimo (1949) e Os Pastores da Noite de Jorge Amado (1964), mas a maioria absoluta das publicações não vai muito além do universo familiar dos seus autores.

Tendo começado como uma apostila de uma dúzia de folhas mimeografadas na década de 1930, a Teoria Geral do Estado de Darcy Azambuja sobreviveu por mais de meio século na linha de frente do ensino jurídico, iniciado em 1827 em São Paulo e hoje praticado em mais de 1500 cursos de Direito pelo Brasil afora.

Nascido em 1903 em Encruzilhada do Sul, filho de um fazendeiro arruinado, Darcy foi um dos mais novos de 11 irmãos. Era adolescente quando foi matriculado como aluno interno do Colégio Militar de Porto Alegre, fundado em 1851 pelo Duque de Caxias, presidente da Província. O CMPA era uma das poucas opções gratuitas de ensino técnico. Outra alternativa eram os seminários religiosos que recebiam de braços abertos meninos humildes resgatados dos sacrifícios da vida rural. A princípio, não era preciso ter vocação militar ou religiosa: bastava a disposição para aprender e estudar. Seguir ou não a carreira ficava para decidir depois.

No Colégio Militar, Darcy conviveu com uma gurizada do interior, entre eles o futuro jornalista e poeta Mario Quintana, que entrou em 1919 mas voltou para seu Alegrete natal antes de terminar qualquer curso – consta que, por ser muito acanhado, foi vítima de terríveis humilhações, hoje chamadas de bullying.

Formado agrimensor em 1921 numa turma de 22 alunos, Darcy preferiu não seguir a carreira militar, abraçada com entusiasmo por colegas como Emilio Garrastazu Medici, bageense declarado tenente em 1923, e o estrelense Ernesto Geisel, oficial formado em 1924 - ambos futuros generais que exerceriam o cargo de presidente da República durante a ditadura militar implantada em 1964.

Não é novidade que o CMPA foi uma escola formadora de chefes. Antes de Darcy, passaram por ali Getúlio Vargas, Eurico Gaspar Dutra, Amaury Kruel, Mascarenhas de Moraes, Isidoro Dias Lopes, Humberto de Alencar Castello Branco e Arthur da Costa e Silva, que se destacaram como comandantes após receber influência de professores formados durante os confrontos militares do século XIX no Prata.

Mesmo ciente do andamento de batalhas tremendas entre países da Europa envolvidos na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o jovem Darcy permaneceu insensível ao frêmito que empurrava muitos contemporâneos para o belicismo, numa época de crença generalizada no ditado latino “Si vis pacem, para bellum” (“Se queres a paz, te prepara para a guerra”).

A escola diplomática brasileira só seria criada em 1945 em homenagem ao centenário do nascimento de José Maria da Silva Paranhos Junior, o Barão de Rio Branco (1845-1912), que foi ministro de Relações Exteriores por uma década, justo quando Darcy descobria o gosto pela leitura de ficções.

Sob as asas do chimango Borges

                   Darcy Azambuja formou-se na Faculdade de Direito de Porto Alegre em 1927                                                     

Bem ao contrário do militarismo reinante no colégio da Rua José Bonifácio, Darcy Azambuja queria cursar Direito. Sem recursos de família para estudar nas escolas famosas de São Paulo (onde se formou Joaquim Francisco de Assis Brasil) ou Recife (onde estudou Antonio Augusto Borges de Medeiros) - ambos com perfis de caudilhos civis -, o serrano de Encruzilhada se resignou a disputar uma vaga na Faculdade Livre de Direito de Porto Alegre, fundada em 1900. Para se sustentar enquanto estudava à noite para passar no vestibular, trabalhou por um ano durante os dias de semana na Bromberg, grande importadora de ferragens e material elétrico; aí fez valer seus conhecimentos técnicos em geometria e cálculo. Da vida pessoal, o que se sabe é que, aos domingos, visitava a namorada Maria de Lourdes Michaelsen Vianna, que morava na rua Jeronimo Coelho 295,no Centro da Capital, onde, segundo uma lenda familiar, ele chegava a cavalo, vindo não se sabe de onde. O certo é que foi esse o endereço do futuro casal a vida toda. Ali se criou o único filho, Carlos Eduardo (1929-1989), doutor em leis paradoxalmente apaixonado por armas; sua coleção de artefatos de tiro era tão volumosa que passava por vistorias periódicas do Exército.

Com sua trajetória de rapaz pobre, Darcy ainda arranjava tempo para escrever contos e crônicas publicados no Correio do Povo e no Almanaque da Livraria do Globo. Assim foi preparando a cama para se tornar um ficcionista respeitado.

Quando começou o curso superior, em 1923, Darcy logo arranjou um emprego como responsável pela biblioteca da própria faculdade. Além de dispor da literatura jurídica corrente, foi autorizado a comprar obras literárias dos principais países do mundo. Nas férias, para complementar os rendimentos necessários a seu sustento como solteiro apreciador das boas coisas da vida, conseguiu um trabalho extra como inspetor escolar da Secretaria da Educação, função que lhe permitiu voltar ao interior, inclusive à terra natal, para observar professores e tomar o pulso do ensino público – lamentável, segundo sua avaliação. Eram os últimos anos dos intermináveis governos do fazendeiro, advogado e chefe republicano Antonio Augusto Borges de Medeiros, entronizado no poder por Julio de Castilhos, falecido em 1903.

À sombra do caudilho maior

Na foto, Azambuja assinando o livrão do Partido Republicano; jurista teve importante papel nas disputas da época  

Darcy se formou na turma de agosto de 1927, o ano do centenário do primeiro curso de Direito do País, em São Paulo. Foi o orador escolhido pelos 16 colegas. Reconhecido como funcionário eficiente da biblioteca, logo foi nomeado secretário da faculdade de Direito. E ainda arranjou um “bico” na redação do jornal A Federação, órgão oficial do Partido Republicano. Pela qualidade do seu texto, não demorou a se tornar editorialista, sendo por isso obrigado a frequentar o Palácio Piratini, cujo inquilino desde o início de 1928 era o fazendeiro, advogado e deputado sanborjense Getúlio Vargas.

Ambos tinham em comum a origem rural e a formação jurídica, nada mais. Além da diferença etária de 21 anos, eles possuíam ambições bem diversas. Enquanto Getúlio visava unicamente o poder político, se possível pelo voto, Darcy queria uma cadeira como professor de Direito, cargo vitalício por concurso público.

Foram anos aparentemente felizes para ambos. No Piratini, Getúlio manobrava para alcançar a cadeira presidencial. Para chegar ao Palácio do Catete, buscava aliados em outros estados, ciente de que precisava superar nas urnas a parceria de paulistas e mineiros, mantenedores da chamada “política café com leite”, posteriormente identificada como República Velha.

Circulando da Faculdade de Direito para a redação de A Federação e desta para o Palácio Piratini e a Assembleia Legislativa, Darcy não parecia ter pressa em subir os degraus da fama. Ou disfarçava muito bem. Afinal, como o mais jovem interlocutor dos líderes políticos da província, tinha lugar de destaque em reuniões políticas e encontros de gabinete. Fotos da época registram sua presença em restaurantes e ruas centrais de Porto Alegre em companhia de figuras de proa da política rio-grandense como Oswaldo Aranha, secretário do Interior; André da Rocha, presidente do Tribunal de Justiça; e Florêncio de Abreu, chefe de polícia. Isso sem falar dos deputados mais chegados ao caudilho como Lindolfo Collor, J.B. Luzardo, João Neves da Fontoura, Mauricio Cardoso e João Carlos Machado, entre outros menos votados.Todos irmanados em campanha pela eleição do gaúcho de São Borja à presidência, no pleito de 1930.

Segundo a versão do Partido Republicano, a disputa presidencial terminou com a vitória de Getúlio Vargas sobre o paulista Julio Prestes por uma diferença de 20 mil votos (823 mil a 803 mil), mas o resultado teria sido fraudado pela oligarquia café-com-leite. Logo começaria a conspiração – e Darcy presente, com seu perfil de gavião silente, o mais talentoso redator do partido. No dia 14 de março, saiu em A Federação o editorial convocando o PR a se unir em busca de uma resposta à altura da burla eleitoral sofrida pelo candidato rio-grandense. O último parágrafo veio carregado de palavras épicas: “Cumpre-lhe ver claro, na confusão e no caos. Cumpre-lhe honrar a sua tradição fulgurante, a lição do seu passado magnífico. Exceder-se a si próprio, na hora da amargura, como a si mesmo se excedeu, no momento do triunfo. Com heroísmo, repelir a humilhação;com nobreza, fugir à abdicação; com destemor, salvaguardar a honra; com lealdade, manter a palavra empenhada”.

Sem falar em revide e evitando a palavra “luta”, o artigo tinha uma linguagem carregada de ambiguidades, mas contemplava as vontades majoritárias, ansiosas por dar o troco antes que acabasse o governo de Washingon Luiz. Passado o outono e findo o inverno, se foram todos com Getúlio, o chefe que achou a ocasião oportuna para se fardar de milico no vagão de comando do trem que subiu triunfante do Rio Grande para o centro do país. Sem disposição nem motivos para embarcar na caravana revolucionária, Darcy ficou na província, preocupado com os desdobramentos daquela aventura política. Afinal, seu único filho estava com um ano de idade e ele ainda não havia conquistado a cadeira de professor da faculdade.

Com o aprendiz de feiticeiro

Darcy Azambuja (esq) envolveu-se em momentos chave da política gaúcha e brasileira na primeira metade do século passado

Com a vitória da revolução de outubro de 1930, ascendeu ao Piratini o interventor Flores da Cunha, que logo nomeou Darcy oficial de gabinete. Agora funcionário público de destaque, o jovem advogado viu abrir-se o caminho para realizar seu sonho. Em meados de 1931, finalmente, aos 28 anos, concorreu à vaga de professor de Direito Público e Constitucional na faculdade que conhecia tão bem. Como único candidato, ganhou nota 10 com louvor da banca formada por cinco figuras do Judiciário. O fotógrafo de A Federação flagrou na fila do gargarejo, como ouvinte privilegiado, o próprio interventor Flores da Cunha, que se diplomara em leis no início do século, no Rio.

A partir daí, Darcy combinou as aulas com o cargo de oficial de gabinete do governo estadual. Seguro no ensino, até porque fora convidado a se integrar ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul – o mais jovem num time de veteranos -, sentia-se inseguro no ofício palaciano, até porque seu chefe começava a dar sinais de querer o lugar do chefe revolucionário. As hostilidades começaram em 1932, quando Flores andou conversando com dissidentes de Getúlio, inclusive Borges de Medeiros, que desfrutava de um resto de prestígio após sete mandatos como presidente do Estado. Mas ele acabou ficando ao lado do governo federal e ajudou a abafar a revolta dos paulistas.

Em 1934, ano marcado por uma Constituição nacional inovadora na consignação de direitos civis, trabalhistas e sociais, Darcy foi nomeado secretário do Interior e Justiça, cargo que lhe abriu a possibilidade legal de ser o vice-governador do Estado a partir de 1935, o ano da elaboração da Constituição estadual. Em função de sua posição como professor de Direito Constitucional e de vice-governador, coube-lhe a tarefa de coordenar o trabalho dos deputados constituintes. Entre estes, havia alguns baluartes do Direito, mas nenhum deles ousou afrontar Darcy, elogiado como um artífice genial do constitucionalismo, mesmo sendo o braço direito de um Flores da Cunha ouriçado para suceder a Getúlio no comando do país nas próximas eleições.

Buscando destaque nacional, o governador promoveu um evento comemorativo dos 100 anos da Revolução dos Farrapos. Oito estados construíram pavilhões de exposição no campo da Redenção, rebatizado como Parque Farroupilha. Em setembro, Porto Alegre esteve em festa e foi alvo de notícias em todo o país. O presidente Getúlio compareceu à exposição e, numa reunião no Piratini, do qual foi hóspede oficial, teve um desentendimento com o inquilino legal. Os dois caudilhos ficaram de mal. O professor Darcy andou como que pisando em ovos, até que em outubro de 1937 viu o chefe Flores escapulir para o Uruguai para não ser preso a mando do presidente Vargas. Chocado, não teve tempo de assumir o cargo que lhe era de direito. Por força de um ato do agora presidente plenipotenciário, assumiu o Piratini como interventor o general Daltro Filho,que faleceu algumas semanas depois, sendo substituído pelo general Oswaldo Cordeiro de Farias, nascido em Jaguarão, filho de um militar carioca.

Manual de democracia

              Exemplar de 1962, fotografado na biblioteca da Faculdade de Direito da UFRGS  

Humilhado em sua tripla condição de cidadão, professor de Direito e secretário de Estado, Darcy Azambuja viu encerrar-se com o golpe de Getúlio um decênio de ascensão e brilho nos bastidores do poder rio-grandense. Carreira política? Não mais. Não tinha vocação para esse jogo. A partir dali, resignou-se a retomar seu sonho de ser somente professor. Sem rompantes, discreto e reservado, buscou na Grécia antiga os pilares do seu pensamento sobre a organização do estado moderno. Em alguns momentos do Estado Novo, segundo recordou seu neto Fabio Azambuja, o professor Darcy precisou dar aulas de porta fechada para não ser escutado pelos espiões do regime pró-fascista dirigido por Vargas.

Lançada em plena ditadura do Estado Novo, a Teoria Geral do Estado fora formatada inicialmente como uma simples apostila que, a cada semestre, agregou novas páginas até ganhar a forma de livro pela Editora do Globo, onde trabalhavam diversos amigos como Mario Quintana, Mansueto Bernardi, Othelo Rosa e Erico Verissimo, entre outros menos salientes. De 1942 em diante, a TGE serviu como um manual do ensino da democracia. Primeiro para os alunos de Porto Alegre, depois para milhares de estudantes de todo o Brasil.

Já na versão apostilada, Darcy Azambuja expusera as quatro condições mínimas para a sobrevivência da democracia:

1) existência de uma Constituição;

2) respeito aos direitos individuais;

3) governantes eleitos periodicamente por sufrágio universal e livre;

4) pluralidade partidária.

A partir desse ensinamento básico, a mensagem democrática do professor Azambuja se firmou como uma referência no ensino das leis. Ele lecionou presencialmente para pelo menos um milhar de estudantes, entre eles alguns militantes do direito e da política, como Paulo Brossard de Souza Pinto (1924-2004), que foi senador, ministro da Justiça e presidente do Supremo Tribunal Federal. Segundo Brossard, o mestre dava aulas sentado, perna cruzada e no meio da aula acendia um palheiro, sua última ligação com a vida rural, ao lado do chimarrão.

Pela segunda vez na vida, agora como teórico do Direito e compilador de teorias consagradas, o paisano de Encruzilhada do Sul ganhava o reconhecimento nacional. Hoje pouco lembrada, sua obra cobriu com denodo um largo período de discrepância autoritária nos anos 40 e, depois, de 64 em diante. Darcy faleceu em março de 1970, 40 anos após o editorial em que A Federação denunciou a fraude eleitoral de 1930. Seu ex-aluno Galeno de Lacerda, que dirigiu a faculdade porto-alegrense, admitiu em 2005 que “os militares acabaram com o ensino no Brasil”, conforme está escrito na biografia de Darcy Azambuja. O professor Galeno apontava o Direito da Ufrgs como uma das vítimas do obscurantismo militar. Ainda assim, a escola da avenida João Pessoa continua entre as dez melhores do Brasil.

A preço de banana

                                   Teoria Geral do Estado recebeu mais de 40 edições 

A biografia de Darcy Azambuja, editada por Já Editores em 2005, foi intitulada inicialmente O Cavaleiro da Democracia, nome trocado por um genérico Vida & Obra quando se decidiu que a edição sairia em dois volumes – no primeiro, a biografia; no segundo, uma seleta de seus melhores contos, cujos direitos autorais foram cedidos pela Editora Movimento.

A editora do jornalista Elmar Bones chegou a considerar a hipótese de acoplar um volume comemorativo da Teoria Geral do Estado – teria sido a 46ª edição. Mas os recursos estavam no limite e faltou tempo para uma negociação com a Editora Globo, detentora dos direitos de publicação da obra.

Passados 80 anos desde o lançamento pioneiro, a Teoria Geral do Estado é hoje o tema central de inúmero livros de diversos autores. Na Câmara Brasileira do Livro, entre mais de 300 livros registrados sob esse título, um dos maiores sucessos recentes é Elementos de Teoria Geral do Estado (Saraiva, 2018), do professor paulista Dalmo de Abreu Dallari (1931-2020). Livros recentes sobre o assunto têm preços de R$ 60 a R$ 110 na internet, onde é possível capturar edições virtuais em PDF. Enquanto isso, a velha TGE de Darcy continua sendo oferecida por sebos de todo o Brasil a preços de liquidação. Na Estante Virtual, encontra-se uma edição de 1996 por R$ 7, fora o frete. Democracia a preço de banana.

Darcy galponeiro

                          Darcy Azambuja (esq), em momento de descontração com amigos 

Fora do Direito, Darcy Azambuja é lembrado como o contista brilhante que, seguindo a trilha literária aberta por João Simões Lopes Neto em 1912 com os Contos Gauchescos e Lendas do Sul, foi premiado em 1925 pela Academia Brasileira de Letras pelos contos rurais enfeixados no livro No Galpão, publicado pela Livraria do Globo. Foi uma consagração para o moço de 22 anos numa época em que havia no Rio Grande do Sul apenas dois autores de sucesso na ficção: Alcides Maya e Ramiro Barcellos, este médico e senador; aquele, jornalista e membro da ABL. O viés galponeiro de Darcy sempre lhe valeu reconhecimento. Por exemplo, foi presidente de honra do pioneiro Centro de Tradições Gaúchas Galpão Universitário, fundado por Paixão Cortes em 1948.

Acampado na capital desde menino, Darcy voltou a escrever ficção ao deixar o trabalho como jornalista e assessor palaciano em 1937. Até 1942, andou escrevendo sobre história, tema de um romance publicado sobre a vida na província sulina de 200 anos antes. Depois, parece ter se dado conta de que não havia mais água na cacimba de suas vivências rurais. Viveu então de aulas e leituras.

Várias vezes participou de bancas de mestrado e doutorado em Porto Alegre e em outras capitais, mas respondeu a tais convites não como desafios intelectuais e sim como obrigações de funcionário público. Morreu amargurado em 1970, em plena ditadura militar exercida por alguns de seus ex-colegas do Colégio Militar de Porto Alegre.

Darcy Azambuja: docente e autor em 'Teoria geral do Estado'

                    Darcy Azambuja em sua cadeira de leitura, herdada pelo neto Diogo Azambuja 

Rodrigo Valin de Oliveira
Professor Adjunto de Política e Teoria do Estado
Faculdade de Direito da Ufrgs

O Professor Darcy Azambuja, tanto em sua produção escrita como na qualidade de catedrático, materializa as virtudes da inteligência brasileira. Antevisão e compromisso social norteiam uma obra merecedora de revalorização. Trata-se de um projeto para a democracia.

Para um período de reorganização do Brasil, a partir da década de trinta do século passado, Azambuja sustentava ser necessário o concurso de todos os brasileiros, dos mais obscuros aos mais ilustres. Com efeito, nenhuma reforma política dispensa um grau razoável de consenso, além do esforços de diferentes setores sociais.

A racionalização do poder, em tal cenário, foi o mecanismo eleito por Azambuja para efetivar a democracia brasileira. O momento era de crise do Estado Liberal: cabia superar, entende Darcy Azambuja, teorias individualistas e pseudodemocráticas, transformando-se a estrutura do Estado.

A racionalização do poder ou do Estado, ensinava o docente, é a legalização da vida política e social. Cumpre tornar a norma social direito escrito; costumes políticos, especialmente os relacionados à solidariedade e à justiça, ingressam no direito público. O Estado adapta suas funções às necessidades sociais. Para tanto, o caminho será tornar efetiva e eficaz a participação do povo. Os direitos sociais, ademais, são declarados nos textos constitucionais, o que evidencia verdadeira técnica de racionalização da democracia. “De nada vale ao cidadão o direito de eleger e ser eleito – concluirá Azambuja- quando lhe falta o pão”[1].

Jurista em sintonia com a vanguarda de seu tempo, professor carismático, Azambuja merece respeito. E admiração.

[1] AZAMBUJA, Darcy. A racionalização da democracia. Porto Alegre: Globo, 1933. P. 166.

  * Geraldo Hasse é jornalista. Nascido em Cachoeira do Sul, formou-se em Pelotas. Escreveu uma dezena de livros sobre agricultura, economia, história e meio ambiente. É autor de biografia sobre o escritor e professor Darcy Azambuja.