Prisão após trânsito em julgado de sentença condenatória

Arion Louzada

As normas constitucionais são dotadas de eficácia plena, contida ou limitada, o que significa que algumas independem de legislação infraconstitucional para sua aplicação, outras, ainda que tenham aplicabilidade imediata poderão ter reduzidos os limites a direitos nelas consignados, e que algumas dependem de regulamentação, detalhamento. 
Aos membros das cortes constitucionais o Direito não autoriza subverter a organização funcional da Constituição, determinada pelo constituinte.
A interpretação constitucional requer a prevalência dos pressupostos que façam valer a eficácia da Constituição. Não é possível admitir que a exigência do trânsito em julgado de uma sentença condenatória para o início do cumprimento das penas atenda essa prevalência.
O Art. 283 do Código de Processo Penal não é compatível com a Constituição brasileira.
O que é mais relevante? O direito do povo brasileiro de não ser pilhado - de ter educação, saúde e segurança -, ou a bandidagem enriquecida permanecer solta até que não mais seja possível qualquer dos infindáveis recursos processuais procrastinatórios, que não raro redundam em prescrição?
À metodologia jurídica do século dezenove retrocedem as decisões judiciais que só consagram a subsunção dos fatos aos textos legais. O Supremo Tribunal Federal ressuscitou o positivismo jurídico mais rastaquera ao vedar o início do cumprimento de penas após sentença penal condenatória de segundo grau.
Ainda que o Art. 283 do Código de Processo Penal preceitue que, “ninguém poderá ser ‘preso’ senão [...] em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado [...]”, o conteúdo é imprestável para afastar a prisão de condenados em segunda instância, por ausência de amparo constitucional. Em parte alguma da Constituição Federal o legislador condiciona ao trânsito em julgado de sentença a decretação de prisão.
O Art. 5º, LVII, da Carta não dispõe sobre prisão; o que determina é que “ninguém será considerado ‘culpado’ até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. 
A pergunta de um aluno, ontem, em sala de aula de Direito Constitucional: - “Professor, onde aquela turma foi alfabetizada”? Difícil não rir. Culpado não é sinônimo de preso.
A disciplina da prisão, na Constituição Federal, está consignada no Art. 5º, LXI: - “Ninguém será preso senão [...] por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente [...]”. Além de não exigir trânsito em julgado para o início do cumprimento de pena, o inciso que disciplina prisão garante esta expressamente, quando determinada “por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária”. 
O Art. 283 do Código de Processo Penal contraria frontalmente o Art. 5º, LXI, da Constituição Federal. Inconstitucionalidade material; a matéria ali contida é inconstitucional. Como esse artigo do CPP pode ser útil à vedação da prisão após condenação em segunda instância? Não pode. Não deve. Impossível. Exceto, talvez, em Direito Constitucional exotérico, certa espécie que Reale refere. A Constituição da República Federativa do Brasil é o pressuposto de validade do Art. 283 do CPP, não o contrário.
Um ministro da suprema corte brasileira referir-se à impunidade como uma lenda é um escárnio, sabido que não mais do que 20% dos homicídios cometidos no Brasil são punidos e que esta esdrúxula decisão do STF implica a possibilidade de soltura de mais de 4 mil condenados, segundo o Conselho Nacional de Justiça.
A impunidade no Brasil é a regra, a exceção é a punibilidade.
O processo penal brasileiro está longe de ser o agente ético do direito para servir à sociedade; permanece um velho utensílio técnico, abominável direito adjetivo, incompatível com a ideia de Estado Democrático de Direito. É lento, disfuncional, somente para os delinquentes endinheirados produz resultado ótimo. Não é bom para o povo.
A tentativa de transferência de responsabilidade do Supremo Tribunal Federal para o legislador ordinário, ao considerar-se que a prisão após o trânsito em julgado “não é o desejo de um juiz, não é o desejo de outrem que não dos representantes do povo brasileiro”, é inaceitável. O legislador produz normas jurídicas in abstract; o espectro do alcance das leis e dos atos normativos, sua aplicabilidade ou não, o modo como devem ser aplicados, varia no tempo e no espaço e o encarregado de modular efeitos ampliativos, redutíveis ou restringíveis é o Supremo Tribunal Federal e ninguém mais.