Não erra aquele que deixa de fazer o que a lei não manda

Arion Louzada

Um erro do Supremo Tribunal Federal, STF, com consequências desastrosas para a ordem jurídica, é a anulação da sentença do juiz Sergio Moro, no caso Bendine, dosimetria da pena ajustada pelo tribunal regional federal competente. Ato jurídico perfeito não se sujeita a prejuízo. Moro ordenou alegações finais com acerto, ao final da instrução e antes da sentença.

Não há falar-se em parte tratando-se de colaboradores, seja a colaboração premiada ou não. Colaborador, eufemismo para designar delator, é mera testemunha em relação a corréus de um processo; não é, não pode ser e jamais será parte na acusação ou na defesa de outro corréu, inafastável o princípio da individualização da aplicação das penas.

Toda prova, sentido lato, é uma testemunha, vez que atesta a existência do fato. Delator é testemunha em sentido estrito, porque testemunha é a pessoa que se manifesta em juízo sobre fatos sabidos e referentes à causa. Parte é quem participa de um ato jurídico ou processual como interessado nele, para acusar ou se defender. Testemunha somente pode esclarecer fatos. Observado pelo juiz interesse próprio da testemunha, o conteúdo do depoimento desta não será aproveitado.

O fato do prêmio, em colaboração premiada, não se confunde com o interesse de parte, que acusa ou se defende. Alegações finais de corréu delator somente a ele aproveita. O contido em suas alegações finais, em relação a outro acusado no processo, teria (mas, nem isso tem) o só impacto de um testemunho, inteiramente desprovido de carga acusatória ou defesa.

Delatores não são mais do que testemunhas, em relação aos corréus, porque em sentido lato, repita-se, toda prova é uma testemunha e qualquer alegação de um corréu em relação a outro tem natureza jurídica de manifestação testemunhal. Como a prova testemunhal deve ser colhida de forma oral e sujeita-se ao contraditório, a manifestação de corréu colaborador em alegações finais é imprestável para produzir efeitos sobre a situação de qualquer outro acusado em um mesmo processo. Disso se infere que as manifestações em alegações finais de corréus, sejam eles colaboradores (delatores) ou não, não se sujeitam à ordem cronológica, por ausência de impacto de umas sobre as demais.

Delator não acusa ninguém e por isso não é parte; quem acusa é o órgão do Ministério Público, nas ações penais públicas, como é o caso. Delator também não defende ninguém; quem se defende da acusação é o acusado, por si mesmo ou por seu advogado.

Corréus emergem no processo em plano supra considerado. Ainda que vários autores de um delito possam ser denunciados em uma mesma ação, a conduta de cada um será julgada individualmente e ao sentenciar o juiz aplicará a pena, à toda evidência, individualmente. Bendine está sendo acusado por sua só conduta.

A ordem cronológica se impõe entre acusação e defesa, no curso do processo, porque ninguém pode se defender do que não foi acusado. Todavia, o prazo, para o oferecimento de alegações finais é comum. Não existe dispositivo a estabelecer ordem cronológica de manifestação entre delatores e delatados, em alegações finais. Ainda assim, a 2ª Turma do STF anulou a sentença que desfavorece Bendine, por ter sido este notificado a oferecer alegações finais paralelamente a corréu delator, e não posteriormente. Ao tempo em que conhece da inexistência de disposição regulatória a 2ª Turma vislumbra ofensa ao direito à ampla defesa e ao contraditório. Se isso houvesse, o juiz Moro teria errado. Ora, como Moro pode ter errado ao deixar de cumprir uma regra inexistente? Não erra aquele que deixa de fazer o que a lei não manda.

Toron diz que “o acusado tem o direito de rebater todas as cargas acusatórias, venham de onde vierem”. Há um problema com essa expressão, “venham de onde vierem”. Está errado subsumir ao argumento construção jurídica ausente na lei processual: a que transforma testemunha em parte. O exclusivo encarregado da produção da carga acusatória de que fala Toron é o Ministério Público, ninguém mais.

Gilmar Mendes afirma que: - “A questão é uma via crucis nova, por conta do uso do instituto da colaboração premiada e desse aprendizado institucional que estamos a desenvolver”. Via crucis? Quem é o Cristo? Aprendizado institucional que estão a desenvolver?

Cármen Lúcia assevera: - “Nós temos processo penal, a acusação e o acusado. E os acusados estão na mesmíssima condição. Nesse caso, temos uma grande novidade no direito. O processo chegou onde chegou por causa do colaborador”. Então, nós temos processo penal? Acusação e acusado? E os acusados estão na mesmíssima condição? Não, não, não estão. Cada acusado encontra-se em sua peculiar condição. O processo chegou onde chegou por causa do colaborador? Também não. O colaborador é um corréu no processo, como um todo considerado, mas mera testemunha, na condição de delator - em face dos demais acusados -, porque testemunha é aquele que relata a existência do fato e o que um delator faz não é mais do que isso, como visto. Antes não existia colaborador? A delação é um fenômeno jurídico novo? Essas as razões de decidir?

A decisão da 2ª Turma do STF arreda princípio geral do direito, segundo o qual todos são iguais perante a lei, não devendo ser feita nenhuma distinção entre pessoas que se encontrem na mesma situação. O decidido desordena o ordenamento, estabelecendo um novo procedimento, na maior sem cerimônia substituindo-se a 2ª Turma do STF ao Poder Legislativo.