Receita de Cingapura? Professores escolhidos entre elite intelectual e salário equiparado a funções de prestígio

Paula Adamo Idoeta
Da BBC Brasil em São Paulo

Salto educacional em Cingapura passou a chamar a atenção do mundo; país tem tentado focar em 'educação de valores', mais do que mérito.

     Entre os anos 1950 e 60, Cingapura era um pequeno entreposto comercial, com uma população majoritariamente analfabeta e empobrecida. Hoje, poucas décadas mais tarde, é um hub financeiro internacional que lidera o mais importante ranking mundial de educação.
     Na faixa etária de 15 anos, os estudantes de Cingapura foram os que tiveram melhor desempenho em matemática, ciência e leitura na mais recente avaliação do PISA, exame internacional em que o Brasil ainda se mantém estagnado nas posições mais baixas.
     Essa transformação na educação cingapuriana teve como norte uma ideia: "Ser professor não é um emprego, é uma profissão responsável por moldar as futuras gerações. Tratamos os professores como joias", explicou Goh Chor Boon, gerente-geral da Universidade Tecnológica de Nanyang, que abriga o Instituto Nacional de Educação de Cingapura.
     Goh esteve no Brasil neste mês para explicar o salto educacional de seu país em um seminário promovido pelo Instituto Ayrton Senna e pelo Itaú Social.
     Na prática, disse Goh, a abordagem significou elevar o status dos professores em Cingapura: eles passaram a ser escolhidos entre os 5% dos alunos com o melhor desempenho acadêmico do país e tiveram equiparação salarial inicial com outras profissões de prestígio.
     "Um novo professor tem a mesma remuneração que um novo advogado ou médico no serviço público", explicou Goh durante o seminário. Há também bônus por desempenho em sala de aula, que pode ser de quatro a cinco salários. Ao avançar na carreira, o professor pode se tornar, por exemplo, pesquisador em educação ou mentor.
     Em troca, é exigido que os docentes entreguem "profissionalismo, paixão e gana de moldar o futuro da nação", além de encararem a profissão como uma "missão" - a de formar alunos autônomos em seu aprendizado "que possam sobreviver em qualquer lugar do mundo".
De país empobrecido, Cingapura se tornou hub financeiro internacional
     Também cabe aos professores manter uma formação constante: segundo Goh, eles passam, obrigatoriamente, por 100 horas anuais de treinamento, para se atualizarem com as práticas de ensino mais eficientes e modernas. A "sinergia" entre o Ministério da Educação, as instituições de ensino superior e as escolas têm a missão de garantir que os docentes desenvolvam e apliquem pedagogias inovadoras e cada vez mais voltadas a "valores e à resolução de problemas da vida real".
     "Os professores têm de ser alunos a vida inteira", argumentou o cingapuriano. "Quando eles param de aprender, o ensino sofre."

Rápida mudança

     Para entender o sistema educacional e seu rápido processo de reforma, é preciso voltar no tempo na história de Cingapura. Antiga colônia britânica, a cidade-Estado começou a se autogovernar em 1959. Em 1963, passou a fazer parte da Malásia, mas tornou-se independente apenas dois anos depois.
     Até essa época, a educação era restrita à elite. O então premiê Lee Kuan Yew, fundador do Estado de Cingapura, viu a educação universalizada como uma forma de unificar o país (pequeno, porém multiétnico - formado sobretudo por pessoas de origens chinesa, malaia e indiana) e prover mão de obra para o avanço econômico que viria em seguida.
     Uma nova reforma, em 1997, procurou novamente adaptar o ensino à economia tecnológica e financeira em que o país - desprovido de recursos naturais e obrigado a importar desde comida e água até areia para a construção civil - passou a se destacar.
     Foi criada, então, a política de "escolas pensantes, nação aprendiz", com um currículo baseado na ideia de que todas as crianças têm potencial a ser desenvolvido, de valorização da diversidade e de inteligência emocional e social.
     É, segundo Goh, um sistema "pragmático", abordagem que o país usou para enfrentar o pós-colonialismo britânico e unificar o país.
     "A nação decidiu deixar o legado colonialista, mas adotamos o (idioma) inglês, obrigatório em todas as escolas." Deixaram de existir escolas específicas para grupos étnicos, e todo o sistema passou às mãos do Estado - não há, segundo Goh, escolas privadas em Cingapura.
Valorização e prestígio de professores são vistos como cruciais na educação
Pressão excessiva

     Vale destacar, porém, que Cingapura tem características únicas, que tornam comparações internacionais difíceis.
     A pequena ilha abriga 5,8 milhões de pessoas, menos da metade da população da cidade de São Paulo. O sistema de governo é altamente centralizado e de caráter autoritário - o mesmo partido domina a política cingapuriana desde a independência, dando pouco espaço a manifestações por parte da oposição ou da imprensa. O país não é considerado uma democracia eleitoral.
     E até mesmo os pensadores do sistema educacional cingapuriano se deram conta de que o modelo exigente e meritocrático passou a exercer grande (e pouco saudável) pressão sobre os alunos para manter o alto desempenho e para entrar nas melhores escolas.
     "As escolas se tornaram espaços estratificados e competitivos. Famílias com renda mais alta têm mais capacidade de oferecer às crianças atividades extras. (...) Os que não podem arcar com esses custos dependem da motivação individual das crianças e dos recursos oferecidos pela própria escola para recuperar um possível atraso", afirmou, em artigo à BBC no ano passado, Lim Lai Cheng, diretora da Universidade de Administração de Cingapura.
     Feito esse diagnóstico, ela explicou que Cingapura tem tentado desestimular a obsessão por notas e vagas nas melhores escolas, passando a enfatizar "valores e princípios" e o bem-estar das crianças - a exemplo do que é feito na Finlândia, outro país que é referência na educação global.
Ilha tem população pequena e governo autoritário, o que dificulta comparações internacionais
 "Também houve iniciativas pedindo que escolas e faculdades tivessem um processo de admissão mais flexível, com a avaliação de qualidades como motivação, resiliência e entusiasmo", disse Lim. "Trata-se de uma abordagem mais suave, enfatizando valores e princípios e tentando aprimorar o elo entre escola e trabalho. É a busca para a próxima fórmula da educação em Cingapura."

Prestígio e formação

     Além dessa evolução no modelo de ensino, o que outros países como o Brasil podem tirar de lição de Cingapura, dizem especialistas, é justamente seu empenho em melhorar exponencialmente a formação e o prestígio dos professores.
     Em relatórios recentes, a OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico, que aplica o exame PISA) afirmou que, assim como na pequena nação asiática, os países devem se esforçar para tornar a carreira docente mais atraente aos melhores alunos. Os professores devem ter "status, (bons) salários e autonomia profissional", diz a OCDE, uma vez que a qualidade do corpo docente é vista como condição fundamental para elevar a qualidade da educação como um todo.
     Segundo Goh, a orientação dada aos interessados na carreira de docente em Cingapura é: "se você quer só um emprego, procure outro". "Porque o futuro do país depende dos professores. Então, ele precisa demonstrar paixão e o desejo de fazer o seu melhor."

Idoso e preso: Lava Jato reacende debate sobre encarceramento de pessoas com idade avançada



Mariana Alvim - @marianaalvim
Da BBC Brasil em São Paulo
"Estraçalhado". Assim, o médico Miguel Srougi, do Hospital Sírio Libanês, descreveu a situação do ex-prefeito da capital paulista Paulo Maluf após o político passar três meses preso, em regime fechado, no Complexo Penitenciário da Papuda, em Brasília.

     Hoje, Maluf, com 86 anos e diagnóstico de câncer de próstata, cumpre sua pena por lavagem de dinheiro em casa - após decisão, em abril, do Supremo Tribunal Federal (STF), que considerou a detenção em domicílio mais adequada à condição de saúde do político.
Mas Srougi, em entrevista à colunista Mônica Bergamo, do jornal Folha de São Paulo, defendeu que, para idosos, a pena de prisão seria o equivalente à pena de morte.
    "A imobilidade, a depressão e a desnutrição podem ser fatais para os mais velhos", afirmou o urologista, argumentando que não falava em defesa do próprio paciente, mas pela reflexão sobre a reclusão de idosos.
Mas o que diz a lei sobre a prisão de idosos? Segundo o procurador do Estado de São Paulo José Luiz Moraes, ser idoso não é, no Brasil ou no mundo, condição que isente um cidadão da subordinação à lei ou da possibilidade de ser preso.
     "A idade não gera impunidade. Mas, como a aplicação da pena deve levar em conta as condições da pessoa, a lei prevê alguns tratamentos diferentes nesses casos. Mas nunca a exclusão da pena", aponta Moraes.
     Se o Estatuto do Idoso define como 60 a idade que uma pessoa é assim considerada, diferentes leis falam em faixas etárias distintas para alguns benefícios. A partir dos 70 anos, segundo o Código Penal, o prazo para prescrição do crime é reduzido à metade, e a idade passa a ser considerada uma atenuante na decisão, pelos juízes, de qual será a pena do réu.
     Já pelo Código de Processo Penal, pessoas com mais de 80 anos podem ter a prisão preventiva substituída por prisão domiciliar.

Mais de 5 mil idosos presos
 
      O acolhimento ou não desses benefícios pelos juízes em favor dos réus, porém, já foi alvo de críticas não só por profissionais envolvidos no caso de Maluf, mas também pela defesa de outros políticos comprometidos na Justiça, como o ex-presidente Lula, de 72 anos - mesma idade do ex-ministro da Casa Civil José Dirceu, que pode voltar à cadeia após decisão tomada nesta quinta-feira pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4).
     A corte rejeitou recurso da defesa no processo que envolve o petista e a empreiteira Engevix, no âmbito da Lava Jato.
     Até mesmo o ministro do STF Gilmar Mendes abordou o tema no plenário da corte - sem, no entanto, citar nomes de réus ou condenados.
     Dados disponíveis não especificam o número de detentos por idade exata, mas números do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) mostram que há, no Brasil, pelo menos 5.891 pessoas idosas presas (informações sobre faixa etária só estavam disponíveis para 75% da população prisional). Destas, 87% estão na faixa etária de 61 a 70 anos; 13% tem mais de 70 anos.
Idosos compõem cerca de 1% da população carcerária. Enquanto isso, a maior faixa etária nas prisões brasileiras é daqueles com até 29 anos, que somam 55% dos presos. Os dados do Infopen têm como referência o ano de 2016.

Precariedade

     A situação dos idosos nas prisões tem chamado a atenção de pesquisadores e defensores públicos por condições humanitárias e de saúde.
     A Defensoria Pública de São Paulo começou, neste ano, a mapear e agir judicialmente em prol dessa parcela da população carcerária no Estado.
     O trabalho foi iniciado com os casos de detentos que têm mais de 80 anos. Segundo informações repassadas aos defensores pelo governo estadual, seriam 13 presos nesta condição. A Defensoria já pediu a transferência de parte deles para a prisão domiciliar.
     "O cárcere já é espaço de violação de direitos. Nenhum direito previsto na Constituição ou em convenções internacionais é minimamente garantido. Assim, os idosos vivem uma dupla vulnerabilidade: a ausência destas garantias e a idade avançada", afirmou Leonardo Biagioni de Lima, defensor público em São Paulo, em entrevista à BBC Brasil.
     Nas vistorias realizadas pela defensoria nas prisões paulistas, Lima diz ser frequente encontrar detentos idosos muito debilitados - quando não abandonados.
     "É bem frequente se observar um esquecimento dessas pessoas, que não recebem visitas, por exemplo. Vimos idosos sem condições de andar ou se levantar, e também com problemas graves de saúde. Sabemos que faltam profissionais de saúde nesse lugares, com algumas unidades prisionais sem um médico na equipe", diz o defensor, enumerando problemas também de alimentação precária, ausência de água potável e acessibilidade.
     A superlotação, segundo Lima, também força detentos, incluindo idosos, a dormir no chão ou a dividir colchões deteriorados. De acordo com dados do Infopen, a taxa de ocupação média das vagas nas unidades prisionais do Brasil é de 197% - ou seja, faltam 358,6 mil vagas.

Abandono
   
     Nos arredores de uma prisão em Sorocaba onde há dezenas de detentos idosos, a BBC Brasil acompanhou a movimentação de um dia de visita. Parentes e amigos de presos que esperavam do lado de fora disseram ser muito comum ver ali dentro idosos debilitados, alguns em cadeira de rodas, há tempos sem receber visitas.



     Uma mulher, que não quis se identificar, esperava para visitar o marido de 68 anos, preso há dois após condenação por estupro. Segundo ela, o fato dele ser diabético e ter pressão alta a preocupa.
     "É difícil conseguir consultas e remédios. Com a saúde dele, tem que sempre estar acompanhando, mas lá dentro não tem. A gente vem aqui pra animar ele, que já ocupa a cabeça", contou.
     A BBC Brasil procurou a Secretaria da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo para comentar a questão, mas não obteve retorno.

Envelhecer atrás das grades

     Kaio Keomma, doutorando em saúde pública pela Universidade de São Paulo (USP), foi coautor em uma publicação que entrevistou, em 2011, 11 idosos presos na Paraíba. Ao lado das pesquisadoras Lannuzya Veríssimo de Oliveira e Gabriela Maria Cavalcanti Costa, Keomma constatou que, para estes entrevistados, o envelhecimento estava relacionado a sentimentos de melancolia, angústia, constantes perdas e impossibilidade de desenvolvimento.
     Dificuldades para realizar trabalhos e para manter os laços familiares, além da experimentação de conflitos geracionais, significava para os idosos uma perda de qualidade de vida no cárcere.
     "É melhor morrer do que estar dentro de uma joça dessa", disse um dos entrevistados.
     "Tá vendo essa gritaria aí? Sobe a pressão! Sobe tudo! Como é que a pressão do cara baixa em um lugar como esse?", questionou outro.
     Keomma lembra que, assim como no sistema de saúde ou no mercado de trabalho, o envelhecimento populacional deverá ser levado em conta como uma questão crescente a ser enfrentada também no sistema penitenciário.
     "As significações relativas ao envelhecimento encontradas nos presídios se assemelham às encontradas fora deles, como sentimentos de decadência, finitude, adoecimento, cansaço e desvalorização social", aponta Keomma. "Mas estas significações parecem ser evidenciadas com mais facilidade e, às vezes, até potencializadas, pelo encarceramento."
     Já o defensor público Biagioni de Lima destaca que, além das perspectivas de aumento da população idosa, é preciso considerar o que chama de envelhecimento precoce pelas condições precárias no cárcere.