O Brasil judicializou a vida. O Direito precisa ser a fórmula de tornar o ser humano feliz
José Renato Nalini
José Renato Nalini
O Estado de S.Paulo
O Brasil precisa acordar e ter coragem de enfrentar problemas que, aparentemente menores, contribuem para afligir a Nação e seus sacrificados habitantes. Nem todos a fruir o status civitatis, ou seja, não conseguem ser cidadãos, ter o direito a exercer direitos, diante de estruturas arcaicas e inertes.
Um dos cenários evidentes para quem está fora do Brasil é a fragílima situação do sistema de Justiça. O Brasil judicializou a vida. Mais de uma centena de milhões de processos infernizam a rotina de outros milhões de brasileiros. Tudo é levado à apreciação de um juiz, que depois de decidir verá a sua decisão ser aferida por um tribunal de segunda instância. Mas não para aí a peregrinação de quem precisa da Justiça: o processo pode chegar à terceira instância, em geral o Superior Tribunal de Justiça e, não raro, atingir a quarta instância, o Supremo Tribunal Federal.
Esse percurso tortuoso se submete a várias dezenas de possibilidades de reapreciação do mesmo tema, pois imerso num caótico sistema recursal. O processo passou a ser a grande chave para que algo chegue a uma definição ou, muitas vezes, deixe de ser examinada a substância da controvérsia.
É óbvio que a cultura jurídica é uma causa eficiente desse fenômeno. Quando Pedro I quis produzir uma burocracia tupiniquim e cortar o cordão umbilical com a Faculdade de Direito de Coimbra, ele foi buscar naquela fonte o modelo até hoje vigente. O ensino coimbrão já contava em 1827 com experiência quase milenar, pois inspirado em Bolonha, uma das mais antigas universidades do continente europeu.
Transplantado para o Brasil, com a gloriosa São Francisco e a Faculdade de Olinda, logo depois transferida para o Recife, replicou o padrão que se manteve inalterado, salvo exceções, até o século 21. O ensino é compartimentado, cada disciplina merece toda a atenção do titular e do departamento, em regra uma não conversa com a outra. Insiste-se na memorização, prevalece o magister dixit: alguém detém o conhecimento e o transmite ao aluno, “tábula rasa” que nada sabe e vai se abeberar na fonte de saber, o catedrático.
Duas coisas apenas mudaram. Primeira, o milagre da criação de Faculdades de Direito. Hoje o Brasil tem, sozinho, um número de escolas para o ensino da ciência jurídica em escala superior à soma de todas as outras que existem no planeta. Os Estados Unidos, por exemplo, continuam com suas 330 faculdades. Nós já chegamos a 1.300.
Segunda alteração: o processo ganhou autonomia científica. Houve um tempo em que ele era denominado um direito “adjetivo”: servia como instrumento para que a substância, o “direito substantivo”, chegasse às mãos e à consciência do juiz. Tanto lutaram os processualistas que de instrumento ele passou a ser essência. Hoje o processo e o procedimento são mais importantes que o mérito. Perscrute-se a porcentagem de lides que terminam apenas processualmente e não veem analisada a questão de fundo que levou a parte a procurar o socorro judicial.
Foi esse desenvolvimento que causou o paroxismo do “quádruplo grau de jurisdição”, quando o mundo inteiro se satisfaz com o “duplo grau de jurisdição”, hoje tão menosprezado.
O ensino jurídico precisa se atualizar. Afinal, a 4.ª Revolução Industrial sacrifica profissões, cerca de 701 delas tendem a desaparecer. A automação substituirá milhões de funções. A inteligência artificial compete e pode ganhar da inteligência humana, como já aconteceu com o Watson, vencedor de várias partidas de xadrez com os mais festejados xadrezistas. A internet de todas as coisas, a computação quântica, a robótica, tudo é diferente. O Direito precisa voltar a ser a fórmula de tornar o ser humano feliz. Ou de reduzir a carga de atribulações a que ele está submetido nesta efêmera e frágil passagem pelo planeta.
Missão quase impossível é convencer os educadores da ciência do Direito de que hoje as habilidades cognitivas não são tão importantes, pois o conhecimento está disponível para todos e nunca foi tão acessível. O que importam são as competências socioemocionais, como a empatia, a flexibilidade, a capacidade de comunicação e de readaptar-se continuamente, o talento para a harmonização, a busca da paz, da concórdia e do diálogo. Temas que nem sequer são cogitados por um sistema que ainda enxerga o processo como a mais adequada estratégia de solucionar um problema.
Enquanto não se atinge a maturidade cívica e a lucidez não orientar os que podem proceder às mudanças, pelo menos os concursos públicos para as carreiras jurídicas poderiam merecer adequação. Qual o significado de se exigir de um futuro juiz, promotor, defensor, procurador, delegado de polícia ou delegatário de serviço extrajudicial a memorização e o domínio mnemônico de um acervo enciclopédico de informações? Para que decorar toda a legislação, toda a doutrina e toda a jurisprudência, se a tríade pode ser localizada em segundos mediante utilização do Google?
O Brasil precisa mais é de pessoas sensíveis, equilibradas, prontas para o inesperado. Capazes de se reformular. Tolerantes. Compassivas. Atentas às vulnerabilidades dos semelhantes. Emotivas. Caridosas. Compreensivas.
A erudição arrogante pode fazer a sua parte. Decidir e pôr fim ao processo. Nem sempre – ou quase nunca – encerrar o conflito. Denunciar, ainda que às vezes de forma temerária. Assim por diante, replicando a praxe tecnicista, intensificando a nefasta influência da burocracia, afligindo ainda mais o aflito que necessita dos préstimos da Justiça.
Os concursos públicos precisam aprender com a iniciativa privada, que nunca entregaria a uma comissão ad hoc, sem experiência em recrutamento, a grave missão de renovar os quadros de que necessita para atender às finalidades para as quais ela é preordenada.
Quem ousaria pensar nisso?
* Ex- presidente da Academia Paulista de Letras. Autor de 'Ética Geral e Profissional', 13ª Ed. RT-THOMSON.